O limão na geladeira
MELCHÍADES CUNHA JÚNIOR
Especial para o Estado de Sao Paulo, October 30, 2002

José Serra tinha um limão para fazer uma limonada. Preferiu guardá-lo na geladeira. O limão era Fernando Henrique Cardoso e seu governo.

E Serra acabou vitimado pela armadilha que ele próprio criou. Achou que o limão era azedo demais, menosprezou as qualidades do fruto, esqueceu-se de que uma boa limonada exige água pura, de preferência mineral sem gás, sem excesso de açúcar ou adoçante.

E o que fizeram insistentemente Lula, Garotinho, Ciro, José Maria e Rui Costa em suas campanhas? Demonizar o governo de que Serra participou e transformar o PSDB num limão de sabor insuportável. O candidato oficial preferiu não contra-atacar. Insistiu na estratégia de que os eleitores não deveriam olhar para trás, mas para frente. Leu mal a passagem bíblica sobre a mulher de Ló. Em outras palavras, Serra parecia dizer que, também ele, não concordava com o modelo FHC que vigora no País desde a implantação do Plano Real.

"Esqueça FHC", alguém pode ter pensado que este teria sido o conselho de Nizan Guanaes, o festejado marqueteiro de Serra. Será mesmo? Quem conhece o Nizan sabe de sua imensa admiração e amizade por Fernando Henrique. Mas se foi Nizan quem aconselhou Serra a esquecer FHC, como a saída que restava para levar seu cliente à vitória, no mínimo cometeu um wishful thinking [em ingles no original, em portuges pode ser:  uma possível racionalização de desejo]. O fato é que o candidato oficial não se deu ao trabalho de fazer um balanço dos anos FHC, em toda a sua campanha, tanto no primeiro como no segundo turno.

Será que os brasileiros têm na memória como era o País antes dos anos Fernando Henrique? Alguns milhões, certamente. Mas, outros tantos milhões não tiveram esta oportunidade durante a campanha eleitoral. Ao contrário, seduziram-se pelo discurso oposicionista, centrado na "mudança" e na demolição da obra do atual governo. E essa imagem se consolidou pela inação, para não dizer colaboração inconsciente, do candidato situacionista. Não precisa ser marqueteiro para se saber que, numa campanha, a primeira tarefa é animar e consolidar os eleitores que são simpáticos ao candidato. Os admiradores de FHC não tiveram motivos para animar-se com a campanha serrista. Que dizer, então, da cúpula, da subcúpula, do médio e do baixo clero que compõem o governo de Fernando Henrique? Lula acusou Serra de ser o político mais desagregador que ele conheceu. Era um discurso eleitoral, evidente. Mas juízo não muito diverso deve ter sido feito por gente do Planalto e da Esplanada dos Ministérios. Afinal, o candidato não a defendeu.

E José Serra tinha muito o que falar sobre o governo de Fernando Henrique.

Não mencionou sequer que o presidente havia recebido das Nações Unidas, e isso em pleno segundo turno, o Prêmio Mahbud ul Haq, entregue a líderes que mais contribuíram para o desenvolvimento social de seus países. No caso de Fernando Henrique, pelos avanços que conseguiu na educação, na saúde, na reforma agrária e na erradicação do trabalho infantil. "Vamos ter saudades de muitos aspectos do governo Fernando Henrique Cardoso", escreveu o jornalista Márcio Moreira Alves a propósito da premiação. E fez essa confissão: "Terei saudades especialmente de dona Ruth, que, serena e discretamente, mudou a forma de o governo intervir na área social."

Não é pouca coisa. Mas Serra poderia também ter lembrado que, com FHC, a democracia brasileira consolidou-se, a estabilidade econômica foi mantida, o saneamento financeiro dos Estados e municípios foi conquistado, a farra com as finanças públicas foi barrada com a Lei de Responsabilidade Fiscal. E poderia lembrar, também, que o presidente enfrentou sucessivas crises econômicas externas, sem que o País soçobrasse, que pegamos um honroso terceiro lugar entre as nações mais favorecidas com investimentos externos diretos... Os defensores de FHC ficariam muito gratos por essas lembranças, que poderiam ser acrescidas de outras tantas, inclusive sobre a figura de gentil-homem do presidente.

Se o governo Lula der certo, será por causa da herança que recebeu; se der errado, é porque malbaratou-a.

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